terça-feira, 12 de novembro de 2013

Do Blog do Rubens Lemos, uma homenagem ao meu amigo Washington

Washington (com a camisa do América-RN)

ARTILHEIRO FAZ O MILIONÁRIO

Ao descer as escadas do hotel, tropeçando de ansiedade, ele lia e relia a carta. Por dentro, punia-se por reclamar da ingratidão do outro a quem transformara a vida como um mágico de fábula. Um chute, um gol, uma zebra e ele havia feito milionário um humilde balconista de mercearia do interior de Goiás.
Time do América: Valdir; Ivã Silva(Carlindo), Odélio(Mário Braga), Queiróz e Olímpio; Zeca, Humberto Ramos e Washington; Pedrada, Hélcio Jacaré e Ivanildo. Técnico: Sebastião Leônidas.

Washington Xavier Amâncio, aos 24 anos, planejava no imediatismo do boleiro legitimado. A primeira providência, concretizado o compromisso assumido na carta maltratada por erros de português seria trocar a sua Variant no Maverick zero quilômetro ou quem sabe no Opala, sonho de consumo da classe média brasileira dos anos boca-sino. Carrões permitidos apenas aos milionários do Milagre Brasileiro da Ditadura Militar nos anos 1970.

Antes de chegar ao hall, Washington leu pela última vez as palavras generosas e a promessa de um prêmio de 50 mil cruzeiros, catorze vezes maior que o seu salário mensal. Washington, como se um anjo torto cortasse o devaneio, começou a perceber a coincidência da letra no papel. Gelou e a decepção foi tomando o efeito de uma ducha na fervura da esperança.

Quando chegou à recepção, encontrou a sua patota às gargalhadas, alguns se contorcendo no chão. Um deles, gigante de cabeleira black power, movia os músculos da face com desdém cirúrgico. Ele, sim, o redator da falsa carta do goiano Miron Vieira de Souza para Washington, autor do gol da vitória do América sobre o Vasco em São Januário , um ano antes.

O jogo fizera parte do teste 254 da Loteria Esportiva e é considerada uma das maiores zebras da história. O goiano Miron Vieira de Souza cravou coluna dois no jogo oito por engano. Achou que estava apostando no América do Rio de Janeiro, que perdeu para o Fluminense na mesma rodada.

Miron tornou-se celebridade. Capa das revistas Manchete e Fatos e Fotos, do Grupo Bloch Editores, entrevista aos telejornais, embolsou R$ 22 milhões à época, hoje cerca de 10 milhões de reais, de acordo com atualizações monetárias.

Sua primeira providência foi comprar uma dentadura com incisivos de ouro. Empolgado como o personagem Carlão da novela Pecado Capital, impulsor do samba de Paulinho da Viola (Dinheiro na mão é vendaval...), gastou quase 1 milhão e meio em farras e viagens e, aconselhado pela família, passou a investir em gado de corte. Tornou-se fazendeiro em Ivolândia (GO), cidade onde nasceu e hoje suas terras são comandadas pelos netos.

Quando entrevistado após a confirmação do prêmio e exibindo o bilhete dos deuses, Miron deu uma resposta de caipira original :

-Ué? Achei que era o América do Rio. Tinham dois Américas no teste e cravei um ganhando e outro perdendo. Terminei tendo uma senhora sorte.

Washington foi escalado pelo técnico Leônidas numa formação conservadora para a época. Um 4-4-2 prático, sem invencionices, com apenas Pedrada e Ivanildo Arara no ataque e Hélcio Jacaré escalado de centroavante, mas recuando ao meio-campo e caindo pelas laterais.

Desfalcado dos seus principais jogadores, o armador Zanata e o então jovem goleador Roberto Dinamite, o Vasco cumpria campanha melancólica e a partida foi marcada para um sábado à noite de frio no Rio de Janeiro.

Jogo morno, América segurando o resultado e a bola na inteligência do seu cerebral meia-armador, Humberto Ramos, campeão brasileiro de 1971 pelo Atlético(MG) e organizador dos contra-ataques.

Numa jogada ensaiada, aos 20 minutos do segundo tempo, Hélcio Jacaré caiu pelo lateral-esquerdo, passou pelo lateral Toninho e mandou o passe cruzado para Washington, que vinha da direita na corrida. O chute foi de canhota, por baixo do goleiro Mazarópi. No canto. 1x0.

O América envolveu o Vasco e ainda fez outro gol, do predestinado(menos para dinheiro), Washington, que encobriu Mazaropi, saiu para comemorar mas voltou frustrado pela anulação do lance, pelo árbitro Sílvio Luiz, anos depois famoso narrador de futebol da Rede Bandeirantes.

Melhor em campo, entrevistado pela Rádio Globo, Washington soube logo depois da glória de Miron. Comentava com os colegas sua tristeza por não ter sido lembrado pelo ganhador dos milhões.

Foi aí que, em 1976, aproveitando uma viagem do América para Goiânia, o craque Hélcio Jacaré escreveu a carta em nome de Miron e a colocou debaixo da porta do quarto de Washington, avisando o restante da delegação para assistir ao sofrimento do colega.

Na trama tecida pela malandragem do falecido goleador na concentração , um "representante" iria deixar o dinheiro para quem proporcionou a independência financeira ao sortudo. Miron de verdade, Washington conheceu em fotografia. Grana, conseguiu suando na grama.

Aos 62 anos, Washington conta a história ao telefone, rindo alto, direto da Vila Brasília, na Serra do Mel, a cerca de 350 quilômetros de Natal, onde vive com a família depois de se aposentar como servidor público federal da Fundação Nacional de Saúde.

Campeão potiguar em 1974,75 e 1977 pelo América, tem três filhos, sete netos e um astral que passa distante de ganâncias. "Esperei mesmo que ele me ajudasse, mas foi ideia de jovem na época. Ninguém deve esperar pelo que os outros não podem ou não querem oferecer. A brincadeira do finado Hélcio Jacaré eu tirei de letra. Éramos grandes amigos, tenho saudades dele." Há 38 anos, o artilheiro fez um milionário.
 
Ficha Técnica: Dia 27/9/1975 - Sábado - Estádio de São Januário(RJ) - Campeonato Brasileiro - Vasco 0x1 América(RN)- Árbitro: Sílvio Luís(SP); Renda: Cr$ 61.455,00; Público: 4.046 pagantes. Gol: Washington aos 20 minutos do segundo tempo. Cartões amarelos: Washington, Ivanildo Arara e Moisés. Vasco: Mazarópi; Toninho, Moisés, Renê e Deodoro; Alcir, Gaúcho(William) e Ademir; Freitas, Jair Pereira e Luís Carlos. Técnico: Mário Travaglini. América: Valdir; Ivã Silva(Carlindo), Odélio(Mário Braga), Queiróz e Olímpio; Zeca, Humberto Ramos e Washington; Pedrada, Hélcio Jacaré e Ivanildo. Técnico: Sebastião Leônidas. 

Fonte: Blog de Rubens Lemos

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente